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segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Revolução Russa


A REVOLUÇÃO RUSSA SEGUNDO ERIC HOBSBAWM

A revolução foi a filha da guerra no século 20: especificamente a Revolução Russa de 1917, que criou a União Soviética, transformada em superpotência pela segunda fase da Guerra dos Trinta e Um Anos, porém mais geralmente a revolução como uma constante global na história do século. A guerra sozinha não conduz necessariamente a crise, colapso e revolução nos países beligerantes.  Na verdade, antes de 1914 predominava a crença contrária, pelo menos em relação a regimes estabelecidos com legitimidade tradicional.  Napoleão I queixava-se amargamente de que o imperador da Áustria podia sobreviver feliz a uma centena de batalhas perdidas, como o rei da Prússia sobrevivera ao desastre e à perda de metade de suas terras, enquanto ele próprio, filho da Revolução Francesa, estaria em risco após uma única derrota.  Mas as tensões da guerra total do século 20 sobre os Estados e povos nela envolvidos foram tão esmagadoras e sem precedentes que eles se viram esticados até quase seus limites e, quase sempre, até o ponto de ruptura. Só os EUA saíram das guerras mundiais como tinham entrado, apenas um pouco mais fortes. Para todos os demais, o fim das guerras significou levantes. (...)
Durante grande parte do Breve Século 20, o comunismo soviético proclamou-se um sistema alternativo e superior ao capitalismo, e destinado pela história a triunfar sobre ele. E durante grande parte desse período, até mesmo muitos daqueles que rejeitavam suas pretensões de superioridade estavam longe de convencidos de que ele não pudesse triunfar. E com a significativa exceção dos anos de 1933 a 1945 (ver capítulo 5) a política internacional de todo o Breve Século 20 após a Revolução de Outubro pode ser mais bem entendida como uma luta secular de forças da velha ordem contra a revolução social, tida como encarnada nos destinos da União Soviética e do comunismo internacional, a eles aliada ou deles dependente.
À medida que avançava o Breve Século 20, essa imagem da política mundial como um duelo entre as forças de dois sistemas sociais rivais (cada um, após 1945, mobilizado por trás de uma superpotência a brandir armas de destruição global) se tornou cada vez mais irrealista. Na década de 1980, tinha tão pouca relevância para a política internacional quanto as Cruzadas. Mas podemos entender como veio a existir. Pois, mais completa e inflexivelmente até mesmo que a Revolução Francesa em seus dias jacobinos, a Revolução de Outubro se via menos como um acontecimento nacional que ecumênico. Foi feita não para proporcionar liberdade e socialismo à Rússia, mas para trazer a revolução do proletariado mundial. Na mente de Lenin e seus camaradas, a vitória bolchevique na Rússia era basicamente uma batalha na campanha para alcançar a vitória do bolchevismo numa escala global mais ampla, e dificilmente justificável a não ser como tal.
Que a Rússia czarista estava madura para a revolução, merecia muitíssimo uma revolução, e na verdade essa revolução certamente derrubaria o czarismo, já fora aceito por todo observador sensato do panorama mundial desde a década de 1870 (ver A era dos impérios, capítulo 12). Após 1905 e 6, quando o czarismo foi de fato posto de joelhos pela revolução, ninguém duvidava seriamente disso. Alguns historiadores, em retrospecto, dizem que a Rússia czarista, não fossem o acidente da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique, teria evoluído para uma florescente sociedade industrial liberal capitalista, e estava a caminho disso, mas seria necessário um microscópio para detectar profecias desse tipo feitas antes de 1914. Na  verdade,  o  regime  czarista  mal  se  recuperara  da revolução de 1905 quando, indeciso e incompetente  como sempre,  se  viu mais uma vez açoitado por uma onda de descontentamento social em rápido crescimento. Tirando a firme lealdade do exército, polícia e serviço público nos últimos meses antes da eclosão da guerra, o país parecia mais uma vez à beira de uma erupção. Na verdade, como em tantos dos países beligerantes, o entusiasmo e patriotismo das massas após a eclosão da guerra desarmaram a situação política embora, no caso da Rússia, não por muito tempo. Em 1915, os problemas de governo do czar pareciam mais uma vez insuperáveis. Nada pareceu menos surpreendente e inesperado que a revolução de março de 1917, que derrubou a monarquia russa e foi universalmente saudada por toda a opinião pública ocidental, com exceção dos mais empedernidos reacionários tradicionalistas.  E, no entanto, com exceção dos românticos que viam uma estrada reta levando das práticas coletivas da comunidade aldeã russa a um futuro socialista, todos tinham como igualmente certo que uma revolução da Rússia não podia e não seria socialista.  As condições para tal transformação simplesmente não estavam presentes num país camponês que era um sinônimo de pobreza, ignorância e atraso, e onde o proletariado industrial, o predestinado coveiro do capitalismo de Marx, era apenas uma minúscula minoria, embora estrategicamente localizada. Os próprios revolucionários marxistas russos partilhavam dessa opinião.  Por si mesma, a derrubada do czarismo e do sistema de latifundiários iria produzir, e só se poderia esperar que produzisse, uma revolução burguesa. A luta de classes entre a burguesia e o proletariado (que, segundo Marx, só podia ter um resultado) continuaria então sob as novas condições políticas.  Claro, a Rússia não existia isolada, e uma revolução naquele enorme país, que se estendia das fronteiras do Japão às da Alemanha, e cujo governo era parte do punhado de potências mundiais que dominava a situação mundial, não poderia deixar de ter grandes conseqüências internacionais. O próprio Karl Marx, no fim da vida, tinha esperado que a Revolução Russa agisse como uma espécie de detonador, disparando a revolução proletária nos países ocidentais industrialmente mais desenvolvidos, onde estavam presentes as condições para uma revolução socialista proletária.  Como veremos, lá pelo fim da Primeira Guerra Mundial, pareceu que era exatamente isso que ia acontecer.
Havia mais uma complicação. Se a Rússia não estava pronta para a revolução socialista proletária dos marxistas, tampouco estava para a revolução burguesa liberal.  Mesmo os que não queriam mais que isso tinham de encontrar um meio de fazê-lo sem depender das pequenas e fracas forças da classe média liberal russa, uma minúscula minoria sem posição moral, apoio público ou tradição institucional de governo representativo em que pudesse encaixar-se. Os Cadetes, partido do liberalismo burguês, tinham menos de 2,5% dos deputados da Assembléia Constitucional livremente eleita (e logo dissolvida) de 1917 e 8. Uma Rússia liberal burguesa teria de ser conquistada pelo levante de camponeses e operários que não sabiam nem se importavam com o que era isso, sob a liderança de partidos revolucionários que queriam outra coisa, ou o que era mais provável, as forças que faziam a revolução iriam além de seu estágio liberal-burguês, passando para uma mais radical revolução permanente (para usar a expressão adotada por Marx e revivida durante a revolução de 1905 pelo jovem Trotski).  Em 1917, Lenin, cujas esperanças não tinham ido muito além de uma Rússia democrático-burguesa em 1905, também concluiu desde o início que o cavalo liberal não era um dos corredores no páreo revolucionário russo.  Era uma avaliação realista. Contudo, em 1917 estava tão claro para ele quanto para todos os outros marxistas russos e não russos que simplesmente não existiam na Rússia as condições para uma revolução socialista.   Para os revolucionários marxistas na Rússia, sua revolução tinha de espalhar-se em outros lugares.
Mas nada parecia mais provável de que era isso que iria acontecer mesmo, porque a Grande Guerra acabou em generalizado colapso político e crise revolucionária, sobretudo nos Estados beligerantes derrotados. Em 1918, todos os quatro governantes das potências derrotadas (Alemanha, Áustria Hungria, Turquia e Bulgária) perderam seus tronos, assim como o czar da Rússia, derrotada pela Alemanha, que já caíra em 1917.  Além disso, a inquietação social, equivalendo quase a uma revolução na Itália, abalou até mesmo os beligerantes europeus do lado vencedor.
Como vimos, as sociedades da Europa beligerante começaram a vergar sob as extraordinárias pressões da guerra em massa. Baixara a onda inicial de patriotismo que se seguira à eclosão da guerra. Em 1916, o cansaço de guerra transformava-se em hostilidade surda e calada em relação a uma matança aparentemente interminável e incerta, que ninguém parecia ter vontade de acabar. Enquanto, em 1914, os adversários da guerra se sentiam desamparados e isolados, em 1916 podiam sentir que falavam pela maioria. O quanto a situação mudara dramaticamente foi demonstrado quando, em 28 de outubro de 1916, Friedrich Adler, filho do líder e fundador do partido socialista austríaco, assassinou deliberadamente e a sangue frio o primeiro ministro austríaco, conde Stürgkh, num café de Viena era uma época de inocência, antes dos homens da segurança como um gesto público contra a guerra.
O sentimento antiguerra naturalmente elevou o perfil político dos socialistas, que cada vez mais reverteram à oposição que seus movimentos faziam à guerra antes de 1914. Na verdade, alguns partidos (por exemplo, na Rússia, na Sérvia e na Grã-Bretanha o Partido Trabalhista Independente) jamais deixaram de opor-se a ela, e, mesmo onde os partidos socialistas apoiaram a guerra, seus mais eloqüentes opositores se encontravam em suas fileiras. Ao mesmo tempo, e em todos os grandes países beligerantes, o movimento trabalhista organizado nas vastas indústrias de armamentos tornou-se um centro de militância industrial e antiguerra. Os ativistas sindicais de escalões inferiores nessas fábricas, homens qualificados em forte posição de barganha (delegados de fábrica na Grã-Bretanha; Betrjebsobleute" na Alemanha), tornaram-se sinônimos de radicalismo. Os artífices e mecânicos das novas marinhas de alta tecnologia, pouco diferentes de fábricas flutuantes, moveram-se na mesma direção. Tanto na Rússia quanto na Alemanha, as principais bases navais (Kronstadt; Kiel) iriam tornar-se grandes centros de revolução, e mais tarde um motim naval francês no mar Negro deteria a intervenção francesa contra os bolcheviques na Guerra Civil russa de 1918-1920. A rebelião contra a guerra adquiriu assim concentração e atuação. Não admira que os censores austro-húngaros, controlando a correspondência de seus soldados, passassem a notar uma mudança de tom. "Se ao menos o bom Deus nos trouxesse a paz tomou-se "Para nós já chega” ou “Dizem que os socialistas vão fazer a paz”.
Não surpreende, portanto, que, mais uma vez segundo os censores habsburgos, a Revolução Russa fosse o primeiro acontecimento político desde o inicio da guerra a repercutir nas cartas até mesmo de esposas de camponeses e operários.  E não surpreende, sobretudo depois que a Revolução de Outubro levou os bolcheviques de Lenin ao poder, que os desejos de paz e revolução social se fundissem: um terço da amostragem de cartas censuradas entre novembro de 1917 e março de 1918 esperava obter a paz via Rússia, um terço via revolução, e outros 20% via uma combinação das duas. Que uma revolução na Rússia teria grande repercussão internacional, sempre foi claro desde que a primeira revolução, em 1905-1906, abalara os antigos impérios sobreviventes na época, da Áustria-Hungria até a China, passando por Turquia e Pérsia (ver A era dos impérios, capítulo 12). Em 1917, toda a Europa se tornara um monte de explosivos sociais prontos para ignição.
A Rússia, madura para a revolução social, cansada de guerra e à beira da derrota, foi o primeiro dos regimes da Europa Central e Oriental a ruir sob as pressões e tensões da Primeira Guerra Mundial.  A explosão era esperada, embora ninguém pudesse prever o momento e ocasião da detonação. Poucas semanas antes da revolução de fevereiro, Lenin ainda se perguntava em seu exílio suíço se viveria para vê-la.  Na verdade, o governo do czar desmoronou quando uma manifestação de operárias (no habitual "Dia da Mulher” do movimento socialista 8 de março) se combinou com um lockout industrial na notoriamente militante metalúrgica Putilov e produziu uma greve geral e a invasão do centro da capital, do outro lado do rio gelado, basicamente para exigir pão.  A fragilidade do regime se revelou quando as tropas do czar, mesmo os leais cossacos de sempre, hesitaram e depois se recusaram a atacar a multidão, e passaram a confraternizar com ela. Quando, após quatro dias de caos, elas se amotinaram, o czar abdicou, sendo substituído por um governo liberal provisório, não sem certa simpatia e mesmo ajuda dos aliados ocidentais da Rússia, que temiam que o desesperado regime do czar saísse da guerra e assinasse uma paz em separado com a Alemanha.  Quatro dias espontâneos e sem liderança na rua puseram fim a um Império. Mais que isso: tão pronta estava a Rússia para a revolução social que as massas de Petrogrado imediatamente trataram a queda do czar como uma proclamação de liberdade, igualdade e democracia direta universais. O feito extraordinário de Lenin foi transformar essa incontrolável onda anárquica popular em poder bolchevique. Assim, em vez de uma Rússia liberal e constitucional voltada para o Ocidente, disposta a combater os alemães, o que resultou foi um vácuo revolucionário: um governo provisório impotente de um lado, e do outro uma multidão de conselhos de base (sovietes) brotando espontaneamente por toda parte, como cogumelos após as chuvas. Estes tinham poder de fato, ou pelo menos poder de veto, mas não tinham idéia do que fazer com ele, ou do que se poderia fazer.  Os vários partidos e organizações revolucionários social-democratas bolcheviques e mencheviques, social-revolucionários, e inúmeras facções menores da esquerda, emergindo da ilegalidade tentaram estabelecer-se nessas assembléias, para coordená-las e converte-las às suas políticas, embora no início só Lenin as visse como a alternativa para o governo (Todo poder aos sovietes).  Contudo, é claro que, quando o czar caiu, uma proporção relativamente pequena do povo russo sabia o que representavam os rótulos dos partidos revolucionários, e os que sabiam em geral não eram capazes de discernir seus apelos rivais. O que sabiam era apenas que não mais aceitavam autoridade nem mesmo a autoridade dos revolucionários que diziam saber mais do que eles.
A reivindicação básica dos pobres da cidade era pão, e a dos operários entre eles, melhores salários e menos horas de trabalho. A reivindicação básica dos 80% de russos que viviam da agricultura era, como sempre, terra. Todos concordavam que queriam o fim da guerra, embora a massa de soldados camponeses que formava o exército não fosse a princípio contra a luta como tal, mas contra a severa disciplina e maltrato de outros soldados. O slogan "Pão, Paz, Terra" conquistou logo crescente apoio para os que o propagavam, em especial os bolcheviques de Lenin, que passaram de um pequeno grupo de uns poucos milhares em março de 1917 para um quarto de milhão de membros no início do verão daquele ano. Ao contrário da mitologia da Guerra Fria, que via Lenin essencialmente como um organizador de golpes, a única vantagem real com que ele e os bolcheviques contavam era a capacidade de reconhecer o que as massas queriam; de conduzir, por assim dizer, por saber seguir. Quando, por exemplo, ele reconheceu que, o contrário do programa socialista, os camponeses queriam uma divisão da terra em fazendas familiares, não hesitou um instante em comprometer os bolcheviques com essa forma de individualismo econômico.
Ao contrário, o Governo Provisório e seus seguidores não souberam reconhecer sua incapacidade de fazer a Rússia obedecer suas leis e decretos. Quando homens de negócios e administradores tentaram restabelecer a disciplina de trabalho, não fizeram mais que radicalizar os trabalhadores. Quando o Governo Provisório insistiu em lançar o exército na ofensiva militar em junho de 1917, o exército estava farto, e os soldados camponeses voltaram para suas aldeias a fim de tomar parte na divisão de terra com os parentes.  A revolução espalhou-se pelas estradas de ferro que os levavam de volta para casa.  Ainda não era o momento para uma queda imediata do Governo Provisório, mas do verão em diante a radicalização se acelerou tanto no exército quanto nas principais cidades, cada vez mais em favor dos bolcheviques.  O campesinato deu apoio esmagador aos herdeiros dos narodniks (ver A era da catástrofe, capítulo 9), os social-revolucionários, embora estes se tornassem uma esquerda mais radical, que se aproximou dos bolcheviques, e em breve se juntou a eles no governo após a Revolução de Outubro.
Quando os bolcheviques até então um partido de operários se viram em maioria nas principais cidades russas, e sobretudo na capital, Petrogrado e Moscou, e depressa ganharam terreno no exército, a existência do Governo Provisório tornou-se cada vez mais irreal; em especial quando teve de apelar às forças revolucionárias na capital para derrotar uma tentativa de golpe contra-revolucionário de um general monarquista em agosto. A onda radicalizada de seus seguidores inevitavelmente empurrou os bolcheviques para a tomada do poder.  Na verdade, quando chegou a hora, mais que tomado, o poder foi colhido. Diz-se que mais gente se feriu na filmagem da grande obra de Einsenstein, Outubro (1927), do que durante a tomada de fato do Palácio de Inverno em 7 de novembro de 1917. O Governo Provisório, sem mais ninguém para defendê-lo, simplesmente se esfumou.
Do momento em que a queda do Governo Provisório se tornou certa, a Revolução de Outubro foi mergulhada em polêmicas. A maioria delas é enganadora.  A verdadeira questão não é se a Revolução, como têm dito historiadores anticomunistas, foi um putsch ou um golpe do fundamentalmente antidemocrático Lenin, mas quem, ou o quê, devia ou podia seguir-se à queda do Governo Provisório. A partir do início de setembro, Lênin tentou não apenas convencer os elementos hesitantes em seu partido de que o poder poderia fugir-lhes com facilidade se não tomado por um plano organizado, durante o tempo possivelmente curto em que estava ao seu alcance, mas talvez com igual urgência responder à pergunta Podem os bolcheviques manter o poder do Estado? se o tomassem.  Que poderia fazer, na verdade, qualquer um que tentasse governar a erupção vulcânica da Rússia revolucionária?  Nenhum outro partido além dos bolcheviques de Lenin estava preparado para enfrentar essa responsabilidade sozinho e o panfleto de Lenin sugere que nem todos os bolcheviques estavam tão determinados quanto ele.  Em vista da situação política favorável em Petrogrado, em Moscou e nos exércitos do Norte, a defesa puramente de curto prazo da tomada do poder já, em vez de esperar outros acontecimentos, era de fato difícil de responder.    A contra-revolução apenas começara. Um governo desesperado, em vez de dar lugar aos sovietes, podia entregar Petrogrado ao exército alemão, já na fronteira norte do que é hoje a Estônia, ou seja, a alguns quilômetros da capital. Além disso, Lenin raramente hesitou em encarar de frente os atos mais sombrios. Se os bolcheviques não tomassem o poder, "uma onda de verdadeira anarquia podia tornar-se mais forte do que nós. Em última análise, o argumento de Lenin não podia deixar de convencer seu partido. Se um partido revolucionário não tomasse o poder quando o momento e as massas o pediam, em que ele diferia de um partido não revolucionário?
A perspectiva em longo prazo é que era problemática, mesmo supondo-se que o poder tomado em Petrogrado e Moscou pudesse ser estendido ao resto da Rússia e ali mantido contra a anarquia e a contra-revolução. O programa do próprio Lenin, de empenhar o novo governo do soviete (isto é, basicamente Partido Bolchevique) na transformação socialista da República russa, era essencialmente uma aposta na transformação da Revolução Russa em revolução mundial, ou pelo menos européia. Quem como ele disse tantas vezes imaginaria que a vitória do socialismo pode se dar [...] a não ser pela completa destruição da burguesia russa e européia?. Nesse meio tempo, o dever básico, na verdade único, dos bolcheviques era se agüentarem.  O novo regime pouco fez sobre o socialismo, a não ser declarar que esse era seu objetivo, tomar os bancos e declarar o controle dos operários sobre as administrações existentes, isto é, apor o selo oficial ao que já vinham fazendo de qualquer modo desde a Revolução, enquanto os exortava a manterem a produção funcionando. Nada mais tinha a dizer-lhes.
O novo regime se agüentou. Sobreviveu a uma paz punitiva imposta pela Alemanha em Brest-Litowsk, alguns meses antes de os próprios alemães serem derrotados, e que separou a Polônia, as províncias bálticas, a Ucrânia e partes substanciais do Sul e Oeste da Rússia, além de, de facto, a Transcaucásia (a Ucrânia e a Transcaucásia foram recuperadas).  Os aliados não viram motivo para ser mais generosos com o centro da subversão mundial. Vários exércitos e regimes contra-revolucionários (brancos) levantaram-se contra os soviéticos, financiados pelos aliados, que enviaram tropas britânicas, francesas, americanas, japonesas, polonesas, sérvias, gregas e romenas para o solo russo.  Nos piores momentos da brutal e caótica Guerra Civil de 1918 20, a Rússia soviética foi reduzida a uma faixa de território sem saída para o mar, no Norte e no Centro da Rússia, em algum ponto entre a região dos Urais e os atuais Estados bálticos, a não ser pelo estreito dedo exposto de Leningrado, apontado para o golfo da Finlândia.  As únicas vantagens importantes com que o novo regime contava, enquanto improvisava do nada um Exército Vermelho eventualmente vitorioso, eram a incompetência e divisão das briguentas forças brancas, a capacidade destas de antagonizar o campesinato da Grande Rússia, e a bem fundada desconfiança entre as potências ocidentais de que não podiam ordenar com segurança a seus soldados e marinheiros rebeldes que combatessem os bolcheviques. Em fins de 1920, os bolcheviques haviam vencido.
Assim, contra as expectativas, a Rússia soviética sobreviveu. Os bolcheviques mantiveram, na verdade ampliaram, seu poder, não só (como observou Lênin com orgulho e alívio após dois meses e quinze dias) por mais tempo que a Comuna de Paris de 1871, mas durante anos de ininterrupta crise e catástrofe, conquista alemã e imposição de paz punitiva, separações regionais, contra-revolução, guerra civil, intervenção armada estrangeira, fome e colapso econômico.  Não podia ter estratégia ou perspectiva além de optar, dia a dia, entre as decisões necessárias à sobrevivência imediata e as que arriscavam um desastre imediato.  Quem podia dar-se ao luxo de considerar as possíveis conseqüências em longo prazo, para a Revolução, de decisões que tinham de ser tomadas já, do contrário seria o fim da Revolução e não haveria outras conseqüências a considerar? Uma a uma, as medidas necessárias foram tomadas.  Quando a nova República soviética emergiu de sua agonia, descobriu-se que essas medidas a haviam levado para um lado muito distante do que Lenin tinha em mente na Estação Finlândia.
Mesmo assim, a Revolução sobreviveu. E o fez por três grandes razões: primeiro, possuía um instrumento de poder único, praticamente construtor de Estado, no centralizado e disciplinado Partido Comunista de 600 mil membros. Qualquer que tenha sido seu papel antes da Revolução, esse modelo organizacional, incansavelmente propagado e defendido por Lênin desde 1902, atingiu a maioridade depois dela.  Praticamente todos os regimes revolucionários do Breve Século 20 iam adotar alguma variação dele. Segundo, era, de forma evidente, o único governo capaz de manter a Rússia integral como Estado e disposto a tanto, desfrutando, portanto, de considerável apoio de patriotas russos à parte isso politicamente hostis, como os oficiais sem os quais o novo Exército Vermelho não poderia ter sido construído.  Para estes, como para o historiador que trabalha em retrospecto, a opção em 1917 - 8 não era entre uma Rússia liberal-democrática ou não liberal, mas entre a Rússia e a desintegração, que havia sido o destino de outros impérios arcaicos e derrotados, ou seja, a Áustria-Hungria e a Turquia.  Ao contrário destes, a Revolução Bolchevique preservou a maior parte da unidade territorial multinacional do velho Estado czarista pelo menos por mais 74 anos. A terceira razão era que a Revolução permitira ao campesinato tomar a terra. Quando chegou a isso, o grosso dos camponeses da Grande Rússia núcleo do Estado, além de do seu novo exército achou que suas chances de mantê-la eram melhores sob os vermelhos do que se retomasse a fidalguia. Isso deu aos bolcheviques uma vantagem decisiva na Guerra Civil de 1918-1920. Como se viu, os camponeses russos foram otimistas demais.

HOBSBAWN. Eric. A ERA DOS EXTREMOS. O breve século XX. Companhia das letras

domingo, 5 de agosto de 2012

Revolução Francesa


TEXTO SOBRE REVOLUÇÃO FRANCESA DE AUTORIA DE ERIC HOBSBAWN


Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas socioeconômicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas ideias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e a política europeia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os ainda mais incendiários de 1793. A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as ideias europeias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa.
O final do século XVIII, como vimos, foi uma época de crise para os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos, e suas últimas décadas foram cheias de agitações políticas, às vezes chegando a ponto da revolta, e de movimentos coloniais em busca de autonomia, às vezes atingindo o ponto da secessão: não só nos EUA (1776-83) mas também na Irlanda (1782-4), na Bélgica e em Liège (1787-90), na Holanda (1783-7), em Genebra e até
mesmo - conforme já se discutiu- na Inglaterra (1779). A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns historiadores mais recentes falaram de uma "era da revolução democrática", em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o mais dramático e de maior alcance e repercussão '.
 Na medida em que a crise do velho regime não foi puramente um fenômeno francês, há algum peso nestas observações. Igualmente, pode-se argumentar que a Revolução Russa de 1917 (que ocupa uma posição de importância análoga em nosso século) foi meramente o mais dramático de toda uma série de movimentos semelhantes, tais como os que - alguns anos antes de 1917 - finalmente puseram fim aos antigos impérios turco e chinês. Ainda assim, há aí um equívoco. A Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno isolado, mas foi muito mais fundamental do que os outros fenômenos contemporâneos e suas consequências foram portanto mais profundas. Em primeiro lugar, ela se deu no mais populoso e poderoso Estado da Europa (não considerando a Rússia). Em 1789, cerca de um em cada cinco europeus era francês. Em segundo lugar, ela foi, diferentemente de toda as revoluções que a precederam e a seguiram, uma revolução social de massa, e incomensuravelmente mais radical do que qualquer levante comparável. Não é um fato meramente acidental que os revolucionários americanos e os jacobinos britânicos que emigraram para a França devido a suas simpatias políticas tenham sido vistos como moderados na França. Tom Paine era um extremista na Grã-Bretanha e na América; mas em Paris ele estava entre os mais moderados dos girondinos. Resultaram das revoluções americanas, grosseiramente falando, países que continuaram a ser o que eram, somente sem o controle político dos britânicos, espanhóis e portugueses. O resultado da Revolução Francesa foi que a era de Balzac substituiu a era de Mme. Dubarry.
Em terceiro lugar, entre todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas ideias de fato o revolucionaram. A revolução americana foi um acontecimento crucial na história americana, mas (exceto nos países diretamente envolvidos nela ou por ela) deixou poucos traços relevantes em outras partes. A Revolução Francesa é um marco em todos os países. Suas repercussões, ao contrário daquelas da revolução americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da América Latina depois de 1808. Sua influência direta se espalhou até Bengala, onde Ram Mohan Roy foi inspirado por ela a fundar o primeiro movimento de reforma hindu, predecessor do moderno nacionalismo indiano. (Quando visitou a Inglaterra em 1830, ele insistiu em viajar num navio francês para demonstrar o entusiasmo que tinha pelos princípios da Revolução.) A Revolução Francesa foi, como se disse bem, "o primeiro grande movimento de ideias da cristandade ocidental que teve qualquer efeito real sobre o mundo islâmico", e isto quase que de imediato. Por volta da metade do século XIX, a palavra turca vatan, que até então simplesmente descrevia o local de nascimento ou a residência de um homem, tinha começado a se transformar, sob sua influência, em algo parecido com patrie, o termo "liberdade", antes de 1800 sobretudo uma expressão legal que denotava o oposto de "escravidão", tinha começado a adquirir um novo conteúdo político. Sua influência direta é universal, pois ela forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes, suas lições (interpretadas segundo o gosto de cada um) tendo sido incorporadas ao socialismo e ao comunismo modernos.
A Revolução Francesa é assim a revolução do seu tempo, e não apenas uma, embora a mais proeminente, do seu tipo. E suas origens devem portanto ser procuradas não meramente em condições gerais da Europa, mas sim na situação específica da França. Sua peculiaridade é talvez melhor ilustrada em termos internacionais. Durante todo o século XVIII a França foi o maior rival econômico da Grã-Bretanha. Seu comércio externo, que se multiplicou quatro vezes entre 1720 e 1780, causava ansiedade; seu sistema colonial foi em certas áreas (como nas índias Ocidentais) mais dinâmico que o britânico. Mesmo assim a França não era uma potência como a Grã-Bretanha, cuja política externa já era substancialmente determinada pelos interesses da expansão capitalista. Ela era a mais poderosa, e sob vários aspectos a mais típica, das velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na franca do que em outras partes.
As novas forças sabiam muito precisamente o que queriam. Turgot, o economista fisiocrata, lutou por uma exploração eficiente da terra, por um comércio e uma empresa livres, por uma administração eficiente e padronizada de um único território nacional homogêneo, pela abolição de todas as restrições e desigualdades sociais que impediam o desenvolvimento dos recursos nacionais e por uma administração e taxação racionais e imparciais. Ainda assim, sua tentativa de aplicação desse programa como primeiro-ministro no período 1774-6 fracassou lamentavelmente, e o fracasso é característico. Reformas desse tipo, em doses modestas, não eram incompatíveis com as monarquias absolutas nem tampouco mal recebidas. Pelo contrário, uma vez que as fortaleciam, tiveram, como já vimos uma ampla difusão nessa época entre os chamados "déspotas esclarecidos". Mas na maioria dos países de "despotismo esclarecido" essas reformas ou eram inaplicáveis, e portanto meros floreios teóricos, ou então improváveis de mudar o caráter geral de suas estruturas político-sociais; ou ainda fracassaram em face da resistência das aristocracias locais e de outros interesses estabelecidos, deixando o país recair em uma versão um pouco mais limpa do seu antigo Estado. Na França elas fracassaram mais rapidamente do que em outras partes, pois a resistência dos interesses estabelecidos era mais efetiva. Mas os resultados deste fracasso foram mais catastróficos para a monarquia; e as forças da mudança burguesa eram fortes demais para cair na inatividade. Elas simplesmente transferiram suas esperanças de uma monarquia esclarecida para o povo ou a "nação".
Não obstante, uma generalização desta ordem não nos leva muito longe na compreensão de por que a revolução eclodiu quando eclodiu, e por que tomou aquele curso notável. Para isso, é mais útil considerarmos a chamada "reação feudal" que realmente forneceu a centelha que fez explodir o barril de pólvora da França.
As 400 mil pessoas aproximadamente que, entre os 23 milhões de franceses, formavam, a nobreza, a inquestionável "primeira linha" da nação, embora não tão absolutamente a salvo da intromissão das linhas menores como na Prússia e outros lugares, estavam bastante seguras. Elas gozavam de consideráveis privilégios, inclusive de isenção de vários impostos (mas não de tantos quanto o clero, mais bem organizado), e do direito de receber tributos feudais. Politicamente sua situação era menos brilhante. A monarquia absoluta, conquanto inteiramente aristocrática e até mesmo feudal no seu ethos, tinha destituído os nobres de sua independência política e responsabilidade e reduzido ao mínimo suas velhas instituições representativas "estados" e parlements. O fato continuou a se agravar entre a mais alta aristocracia e entre a noblesse de robe mais recente, criada pelos reis para vários fins, principalmente financeiros e administrativos; uma classe média governamental enobrecida que expressava tanto quanto podia o duplo descontentamento dos aristocratas e dos burgueses através das assembleias e cortes de justiça remanescentes. Economicamente as preocupações dos nobres não eram absolutamente desprezíveis. Guerreiros e não profissionais ou empresários por nascimento c tradição - os nobres eram até mesmo formalmente impedidos de exercer um oficio ou profissão - eles dependiam da renda de suas propriedades, ou, se pertencessem à minoria privilegiada de grandes nobres ou cortesãos, de casamentos milionários, pensões, presentes ou sinecuras da corte. Mas os gastos que exigia o status de nobre eram grandes e cada vez maiores, e suas rendas caíam - já que eram raramente administradores inteligentes de suas fortunas, se é que de alguma forma as conseguiam administrar. A inflação tendia a reduzir o valor de rendas fixas, como aluguéis.
Era, portanto, natural que os nobres usassem seu bem principal, os privilégios reconhecidos. Durante todo o século XVIII, na França como em tantos outros países, eles invadiram decididamente os postos oficiais que a monarquia absoluta preferira preencher com homens da classe média, politicamente inofensivos e tecnicamente competentes. Por volta da década de 1780, eram necessários quatro graus de nobreza até para comprar uma patente no exército, todos os bispos eram nobres e até mesmo as intendências, a pedra angular da administração real, tinham sido retomadas por eles. Consequentemente, a nobreza não só exasperava os sentimentos da classe média por sua bem-sucedida competição por postos oficiais, mas também corroia o próprio Estado através da crescente tendência de assumir a administração central e provinciana. De maneira semelhante, eles - e especialmente os cavalheiros provincianos mais pobres que tinham poucos outros recursos - tentaram neutralizar o declínio de suas rendas usando ao máximo seus consideráveis direitos feudais para extorquir dinheiro (ou mais raramente, serviço) do campesinato. Toda uma profissão, a dos feudistas, nasceu para reviver os direitos obsoletos desse tipo ou então para aumentar ao máximo o lucro dos existentes. Seu mais celebrado membro, Gracchus Babeuf, viria a se tornar o líder da primeira revolta comunista da história moderna, em 1796. Consequentemente, a nobreza não só exasperava a classe média mas também o campesinato.
A situação desta classe enorme, compreendendo talvez 80% de todos os franceses, estava longe de ser brilhante. De fato os camponeses eram em geral livres e não raro proprietários de terras. Em quantidade efetiva, as propriedades nobres cobriam somente um quinto da terra, as propriedades do clero talvez cobrissem outros 6%, com variações regionais.
Assim é que na diocese de Montpellier os camponeses já possuíam de 38 a 40% da terra, a burguesia de 18 a 19%, os nobres de 15 a 16% e o clero de 3 a 4%, enquanto um quinto era de terras comuns. Na verdade, entretanto, a grande maioria não tinha terras ou tinha uma quantidade insuficiente, deficiência esta aumentada pelo atraso técnico dominante; e a fome geral de terra foi intensificada pelo aumento da população. Os tributos feudais, os dízimos e as taxas tiravam uma grande e cada vez maior proporção da renda do camponês, a inflação reduzia o valor do resto. Pois só a minoria dos camponeses que tinha um constante excedente para vendas se beneficiava dos preços crescentes; o resto, de uma maneira ou de outra, sofria, especialmente em tempos de má colheita, quando dominavam os preços de fome. Há pouca dúvida de que nos 20 anos que precederam a Revolução a situação dos camponeses tenha piorado por essas razões.
Os problemas financeiros da monarquia agravaram o quadro.  A estrutura fiscal e administrativa do reino era tremendamente obsoleta, e, como vimos, a tentativa de remediar a situação através das reformas de 1774-6 fracassou, derrotada pela resistência dos interesses estabelecidos encabeçados pelos parlements. Então a França envolveu-se na guerra da independência americana. A vitória contra a Inglaterra foi obtida ao custo da bancarrota final, e assim a revolução americana pôde proclamar-se a causa direta da Revolução Francesa. Vários expedientes foram tentados com sucesso cada vez menor, mas sempre longe de uma reforma fundamental que, mobilizando a considerável capacidade tributável do país, pudesse enfrentar uma situação em que os gastos excediam a renda em pelo menos 20% e não havia quaisquer possibilidades de economias efetivas. Pois embora a extravagância de Versailles tenha sido constantemente culpada pela crise, os gastos da corte só significavam 6% dos gastos totais em 1788. A guerra, a marinha e a diplomacia constituíam um quarto, e metade era consumida pelo serviço da dívida existente. A guerra e a divida - a guerra americana e sua dívida - partiram a espinha da monarquia.
A crise do governo deu à aristocracia e aos parlements a sua chance. Eles se recusavam a pagar pela crise se seus privilégios não fossem estendidos. A primeira brecha no fronte do absolutismo foi uma "assembleia de notáveis" escolhidos a dedo, mas assim mesmo rebeldes, convocada em 1787 para satisfazer as exigências governamentais. A segunda e decisiva brecha foi a desesperada decisão de convocar os Estados Gerais, a velha assembleia feudal do reino, enterrada desde 1614. Assim, a Revolução começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado. Esta tentativa foi mal calculada por duas razões: ela subestimou as intenções independentes do "Terceiro Estado" - a entidade fictícia destinada a representar todos os que não eram nobres nem membros do clero, mas de fato dominada pela classe média - e desprezou a profunda crise socioeconômica no meio da qual lançava suas exigências políticas.
A Revolução Francesa não foi feita ou liderada por um partido ou movimento organizado, no sentido moderno, nem por homens que estivessem tentando levar a cabo um programa estruturado. Nem mesmo chegou a ter "líderes" do tipo que as revoluções do século XX nos têm apresentado, até o surgimento da figura pós-revolucionária de Napoleão. Não obstante, um surpreendente consenso de idéias gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma unidade efetiva. O grupo era a "burguesia"; suas ideias eram as do liberalismo clássico, conforme formuladas pelos "filósofos" e "economistas" e difundidas pela maçonaria e associações informais. Até este ponto os "filósofos" podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela Revolução.  Ela teria ocorrido sem eles; mas eles provavelmente constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo. Em sua forma mais geral, a ideologia de 1789 era a maçônica, expressa com tão sublime inocência na Flauta Mágica de Mozart (1791), uma das primeiras grandes obras de arte propagandísticas de uma época em que as mais altas realizações artísticas pertenceram tantas vezes à propaganda. Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. "Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis", dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que "somente no terreno da utilidade comum". A propriedade privada era um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável. Os homens eram iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores não terminariam juntos. A declaração afirmava (como contrário à hierarquia nobre ou absolutismo) que "todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis"; mas "pessoalmente ou através de seus representantes". E a assembleia representativa que ela vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia democraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem "esta causa". Mas no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários.
Entretanto, oficialmente esse regime expressaria não apenas seus interesses de classe, mas também a vontade geral do "povo", que era por sua vez (uma significativa identificação) "a nação francesa". O rei não era mais Luís, pela Graça de Deus, Rei de França e Navarra, mas Luís, pela Graça de Deus e do direito constitucional do Estado, Rei dos franceses. "A fonte de toda a soberania", dizia a Declaração, "reside essencialmente na nação". E a nação, conforme disse o Abade Sieyès, não reconhecia na terra qualquer direito acima do seu próprio e não aceitava qualquer lei ou autoridade que não a sua - nem a da humanidade como um todo, nem a de outras nações. Sem dúvida, a nação francesa, como suas subsequentes imitadoras, não concebeu inicialmente que seus interesses pudessem se chocar com os de outros povos, mas, pelo contrário, via a si mesma como inauguradora ou participante de um movimento de libertação geral dos povos contra a tirania. Mas de fato a rivalidade nacional (por exemplo, a dos homens de negócios franceses com os ingleses) e a subordinação nacional (por exemplo, a das nações conquistadas ou libertadas face aos interesses da grande nation) estavam implícitas no nacionalismo ao qual a burguesia de 1789 deu sua primeira expressão oficial. "O povo" identificado com "a nação" era um conceito revolucionário; mais revolucionário do que o programa liberal-burguês que pretendia expressá-lo. Mas era também uma faca de dois gumes.
Visto que os camponeses e os trabalhadores pobres eram analfabetos, politicamente simples ou imaturos, e o processo de eleição, indireto, 610 homens, a maioria desse tipo, foram eleitos para representar o Terceiro Estado. A maioria da assembleia era de advogados que desempenhavam um papel econômico importante na França provinciana; cerca de 100 representantes eram capitalistas e homens de negócios. O Terceiro Estado tinha lutado acirradamente, e com sucesso, para obter uma representação tão grande quanto a da nobreza e a do clero juntas, uma ambição moderada para um grupo que oficialmente representava 95% do povo. E agora lutava com igual determinação pelo direito de explorar sua maioria potencial
de votos, transformando os Estados Gerais numa assembleia de deputados que votariam individualmente, ao contrário do campo feudal tradicional que deliberava e votava por "ordens" ou "estados", uma situação em que a nobreza e o clero podiam sempre derrotar o Terceiro Estado. Foi aí que se deu a primeira vitória revolucionária. Cerca de seis semanas após a abertura dos Estados Gerais, os Comuns, ansiosos por evitar a ação do rei, dos nobres e do clero, constituíram-se eles mesmo, e todos os que estavam preparados para se juntarem a eles nos termos que ditassem, em Assembleia Nacional com o direito de reformar a constituição. Foi feita uma tentativa contra-revolucionária que os levou a formular suas exigências praticamente nos termos da Câmara dos Comuns inglesa. O absolutismo atingia seus estertores, conforme Mirabeau, um brilhante e desacreditado ex-nobre, disse ao Rei: "Majestade, vós sois um estranho nesta assembleia e não tendes o direito de se pronunciar aqui".


O Terceiro Estado obteve sucesso, contra a resistência unificada do rei e das ordens privilegiadas, porque representava não apenas as opiniões de uma minoria militante e instruída, mas também as de forças bem mais poderosas: os trabalhadores pobres das cidades, e especialmente de Paris, e em suma, também, o campesinato revolucionário. O que transformou uma limitada agitação reformista em uma revolução foi o fato de que a conclamação dos Estados Gerais coincidiu com uma profunda crise sócio-econômica. Os últimos anos da década de 1780 tinham sido, por uma complexidade de razões, um período de grandes dificuldades praticamente para todos os ramos da economia francesa. Uma má safra em 1788 (e 1789) e um inverno muito difícil tornaram aguda a crise. As más safras faziam sofrer o campesinato, pois significavam que enquanto os grandes produtores podiam vender cereais a preços de fome, a maioria dos homens em suas insuficientes propriedades tinha provavelmente que se alimentar do trigo reservado para o plantio ou comprar alimentos àqueles preços, especialmente nos meses imediatamente anteriores à nova safra (maio-julho). Obviamente as más safras faziam sofrer também os pobres das cidades, cujo custo de vida - o pão era o principal alimento - podia duplicar. Fazia-os sofrer ainda mais, porque o empobrecimento do campo reduzia o mercado de manufaturas e portanto também produzia uma depressão industrial. Os pobres do interior ficavam assim desesperados e envolvidos em distúrbios e banditismo; os pobres das cidades ficavam duplamente desesperados já que o trabalho cessava no exato momento em que o custo de vida subia vertiginosamente. Em circunstâncias normais, teria ocorrido provavelmente pouco mais que agitações cegas. Mas em 1788 e 1789 uma convulsão de grandes proporções no reino c uma campanha de propaganda e eleição deram ao desespero do povo uma perspectiva política. E lhe apresentaram a tremenda e abaladora ideia de se libertar da pequena nobreza e da opressão. Um povo turbulento se colocava por trás dos deputados do Terceiro Estado.
A contra-revolução transformou um levante de massa em potencial em um levante efetivo. Sem dúvida era natural que o velho regime oferecesse resistência, se necessário com força armada, embora o exército não fosse mais totalmente de confiança. (Só sonhadores irrealistas suporiam que Luís XVI pudesse ter aceito a derrota e imediatamente ser transformado em um monarca constitucional, mesmo que ele tivesse sido um homem menos desprezível e estúpido do que era, casado com uma mulher menos irresponsável e com menos miolos de galinha, e preparado para escutar conselheiros menos desastrosos.) De fato a contra-revolução mobilizou contra si as massas de Paris, já famintas, desconfiadas e militantes. O resultado mais sensacional de sua mobilização foi a queda da Bastilha, uma prisão estatal que simbolizava a autoridade real e onde os revolucionários esperavam encontrar armas. Em tempos de revolução nada é mais poderoso do que a queda de símbolos. A queda da Bastilha, que fez do 14 de julho a festa nacional francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudada em todo o mundo como o princípio de libertação. Até mesmo o austero filósofo Emanuel Kant, de Koenigsberg, de quem se diz que os hábitos eram tão regrados que os cidadãos daquela cidade acertavam por ele os seus relógios, postergou a hora de seu passeio vespertino ao receber a notícia, de modo que convenceu a cidade de Koenigsberg de que um fato que sacudiu o mundo tinha deveras ocorrido. O que é mais certo é que a queda da Bastilha levou a revolução para as cidades provincianas e para o campo.
As revoluções camponesas são movimentos vastos, disformes, anônimos, mas irresistíveis. O que transformou uma epidemia de inquietação camponesa em uma convulsão irreversível foi a combinação dos levantes das cidades provincianas com uma onda de pânico de massa, que se espalhou de forma obscura mas rapidamente por grandes regiões do país: o chamado Grande Medo {Grande Peur), de fins de julho e princípio de agosto de 1789. Três semanas após o 14 de julho, a estrutura social do feudalismo rural francês e a máquina estatal da França Real ruíam em pedaços. Tudo o que restou do poderio estatal foi uma dispersão de regimentos pouco confiáveis, uma Assembleia Nacional sem força coercitiva e uma multiplicidade de administrações municipais ou provincianas da classe média que logo montaram "Guardas Nacionais" burguesas segundo o modelo de Paris. A classe média e a aristocracia imediatamente aceitaram o inevitável: todos os privilégios feudais foram oficialmente abolidos embora, quando a situação política se acalmou, fosse fixado um preço rígido para sua remissão. O Feudalismo só foi finalmente abolido em 1793. No final de agosto, a revolução tinha também adquirido seu manifesto formal, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em contrapartida, o rei resistiu com sua costumeira estupidez, e setores revolucionários da classe média, amedrontados com as implicações sociais do levante de massa começaram a pensar que era chegada a hora do conservadorismo.
Em resumo, a principal forma da política revolucionária burguesa francesa e de todas as subsequentes estava agora bem clara. Esta dramática dança dialética dominaria as gerações futuras. Repetidas vezes veremos moderados reformadores da classe média mobilizando as massas contra a resistência obstinada ou a contra-revolução. Veremos as massas indo além dos objetivos todos rumo a suas próprias revoluções sociais, e os moderados, por sua vez, dividindo-se em um grupo conservador, dai em diante fazendo causa comum com os reacionários, e um grupo de esquerda, determinado a perseguir o resto dos objetivos moderados, ainda não alcançados, com o auxílio das massas, mesmo com o risco de perder o controle sobre elas. E assim por diante, com repetições e variações do modelo resistência - mobilização de massa - inclinação para a esquerda - rompimento entre os moderados - inclinação para a direita - até que o grosso da classe média passe daí em diante para o campo conservador, ou seja, derrotado pela revolução social. Na maioria das revoluções burguesas subsequentes, os liberais moderados viriam a retroceder, ou transferir-se para a ala conservadora, num estágio bastante inicial. De fato, no século XIX vemos de modo crescente (mais notadamente na Alemanha) que eles se tornaram absolutamente relutantes em começar uma revolução, por medo de suas incalculáveis consequências, preferindo um compromisso com o rei e a aristocracia. A peculiaridade da Revolução Francesa é que uma facção da classe média liberal estava pronta a continuar revolucionária até o, e mesmo além do, limiar da revolução anti-burguesa: eram os jacobinos, cujo nome veio a significar "revolução radical" em toda parte.
Por quê? Em parte, é claro, porque a burguesia francesa não tinha ainda para temer, como os liberais posteriores, a terrível memória da Revolução Francesa. Depois de 1794. ficaria claro para os moderados que o regime jacobino tinha levado a revolução longe demais para os objetivos e comodidades burgueses, exatamente como ficaria claro para os revolucionários que "o sol de 1793", se fosse nascer de novo, teria que brilhar sobre uma sociedade não burguesa. Por outro lado, os jacobinos podiam sustentar o radicalismo porque em sua época não existia uma classe que pudesse fornecer uma solução social coerente como alternativa à deles. Esta classe só surgiu no curso da revolução industrial, com o "proletariado" ou, mais precisamente, com as ideologias e movimentos baseados nele. Na Revolução Francesa, a classe operária e mesmo esta é uma designação imprópria para a massa de assalariados contratados, mas fundamentalmente não industriais -ainda não desempenhava qualquer papel independente. Eles tinham fome, faziam agitações e talvez sonhassem, mas por motivos práticos seguiam os líderes não proletários. O campesinato nunca fornece uma alternativa política para ninguém; apenas, de acordo com a ocasião, uma força quase irresistível ou um obstáculo quase irremovível. A única alternativa para o radicalismo burguês (se excetuarmos pequenos grupos de ideólogos ou militantes impotentes quando destituídos do apoio das massas) eram os "sanscúlottes". um movimento disforme, sobretudo urbano, de trabalhadores pobres, pequenos artesãos, lojistas, artífices, pequenos empresários etc. Os sanscúlottes eram organizados, principalmente nas "seções" de Paris e nos clubes políticos locais, e forneciam a principal força de choque da revolução' - eram eles os verdadeiros manifestantes, agitadores, construtores de barricadas- Através de jornalistas como Marat e Hébert, através de porta-vozes locais, eles também formularam uma política, por trás da qual estava um ideal social contraditório e vagamente definido, que combinava o respeito pela (pequena) propriedade privada com a hostilidade aos ricos, trabalho garantido pelo governo, salários e segurança social para o homem pobre, uma democracia extremada, de igualdade e de liberdade, localizada e direta. Na verdade, os sanscúlottes eram um ramo daquela importante e universal tendência política que procurava expressar os interesses da grande massa de "pequenos homens" que existia entre os pólos do "burguês" e do "proletário", frequentemente talvez mais próximos deste do que daquele porque eram, afinal, na maioria pobres. Esta tendência pode ser observada nos Estados Unidos (sob a forma de uma democracia jeffersoniana e jacksoniana, ou populismo), na Grã-Bretanha (radicalismo), na França (com os antecessores dos futuros "republicanos" e radicais-socialistas), na Itália (com os mazzinianos e os garibaldinos) e em toda parte. Na maioria das vezes, ela costumou se colocar, nas épocas pós-revolucionárias, como uma ala esquerdista do liberalismo da classe média, mas relutante em abandonar o antigo princípio de que não há inimigos na esquerda, e pronta, em tempos de crise, a se rebelar contra "a muralha de dinheiro", "os monarquistas econômicos" ou "a cruz de ouro que crucifica a humanidade". Mas o movimento dos sanscúlottes também não forneceu nenhuma alternativa real. O seu ideal, um passado dourado de aldeões e pequenos artesãos ou um futuro dourado de pequenos fazendeiros e artífices não perturbados por banqueiros e milionários, era irrealizável. A história se movia silenciosamente contra eles. O máximo que podiam fazer - e isto eles conseguiram em 1793-4 - era erguer obstáculos à sua passagem, os quais dificultaram o crescimento econômico francês daquela época até quase a atual. De fato, o sansculotismo foi um fenômeno tão desamparado que seu próprio nome está praticamente esquecido, ou só é lembrado como sinônimo do jacobinismo que lhe deu liderança no Ano II. 



HOBSBAWM. Eric - J. A ERA DAS REVOLUÇÕES -  8ª edição - pg. 71 a 82 - Ed. Paz e Terra