A REVOLUÇÃO RUSSA SEGUNDO ERIC HOBSBAWM
A revolução
foi a filha da guerra no século 20: especificamente a Revolução Russa de 1917,
que criou a União Soviética, transformada em superpotência pela segunda fase da
Guerra dos Trinta e Um Anos, porém mais geralmente a revolução como uma
constante global na história do século. A guerra sozinha não conduz
necessariamente a crise, colapso e revolução nos países beligerantes. Na verdade, antes de 1914 predominava a crença
contrária, pelo menos em relação a regimes estabelecidos com legitimidade tradicional. Napoleão I queixava-se amargamente de que o
imperador da Áustria podia sobreviver feliz a uma centena de batalhas perdidas,
como o rei da Prússia sobrevivera ao desastre e à perda de metade de suas
terras, enquanto ele próprio, filho da Revolução Francesa, estaria em risco
após uma única derrota. Mas as tensões
da guerra total do século 20 sobre os Estados e povos nela envolvidos foram tão
esmagadoras e sem precedentes que eles se viram esticados até quase seus
limites e, quase sempre, até o ponto de ruptura. Só os EUA saíram das guerras
mundiais como tinham entrado, apenas um pouco mais fortes. Para todos os
demais, o fim das guerras significou levantes. (...)
Durante grande
parte do Breve Século 20, o comunismo soviético proclamou-se um sistema
alternativo e superior ao capitalismo, e destinado pela história a triunfar
sobre ele. E durante grande parte desse período, até mesmo muitos daqueles que
rejeitavam suas pretensões de superioridade estavam longe de convencidos de que
ele não pudesse triunfar. E com a significativa exceção dos anos de 1933 a 1945 (ver capítulo 5)
a política internacional de todo o Breve Século 20 após a Revolução de Outubro
pode ser mais bem entendida como uma luta secular de forças da velha ordem
contra a revolução social, tida como encarnada nos destinos da União Soviética e
do comunismo internacional, a eles aliada ou deles dependente.
À medida que
avançava o Breve Século 20, essa imagem da política mundial como um duelo entre
as forças de dois sistemas sociais rivais (cada um, após 1945, mobilizado por
trás de uma superpotência a brandir armas de destruição global) se tornou cada vez
mais irrealista. Na década de 1980, tinha tão pouca relevância para a política internacional
quanto as Cruzadas. Mas podemos entender como veio a existir. Pois, mais
completa e inflexivelmente até mesmo que a Revolução Francesa em seus dias jacobinos,
a Revolução de Outubro se via menos como um acontecimento nacional que
ecumênico. Foi feita não para proporcionar liberdade e socialismo à Rússia, mas
para trazer a revolução do proletariado mundial. Na mente de Lenin e seus
camaradas, a vitória bolchevique na Rússia era basicamente uma batalha na campanha
para alcançar a vitória do bolchevismo numa escala global mais ampla, e dificilmente
justificável a não ser como tal.
Que a Rússia czarista
estava madura para a revolução, merecia muitíssimo uma revolução, e na verdade
essa revolução certamente derrubaria o czarismo, já fora aceito por todo
observador sensato do panorama mundial desde a década de 1870 (ver A era dos
impérios, capítulo 12). Após 1905 e 6, quando o czarismo foi de fato posto de joelhos
pela revolução, ninguém duvidava seriamente disso. Alguns historiadores, em
retrospecto, dizem que a Rússia czarista, não fossem o acidente da Primeira Guerra
Mundial e a Revolução Bolchevique, teria evoluído para uma florescente sociedade
industrial liberal capitalista, e estava a caminho disso, mas seria necessário um
microscópio para detectar profecias desse tipo feitas antes de 1914. Na verdade,
o regime czarista
mal se recuperara
da revolução de 1905 quando, indeciso e incompetente como sempre,
se viu mais uma vez açoitado por
uma onda de descontentamento social em rápido crescimento. Tirando a firme lealdade
do exército, polícia e serviço público nos últimos meses antes da eclosão da guerra,
o país parecia mais uma vez à beira de uma erupção. Na verdade, como em tantos dos
países beligerantes, o entusiasmo e patriotismo das massas após a eclosão da
guerra desarmaram a situação política embora, no caso da Rússia, não por muito
tempo. Em 1915, os problemas de governo do czar pareciam mais uma vez
insuperáveis. Nada pareceu menos surpreendente e inesperado que a revolução de
março de 1917, que derrubou a monarquia russa e foi universalmente saudada por toda
a opinião pública ocidental, com exceção dos mais empedernidos reacionários tradicionalistas. E, no entanto, com exceção dos românticos que
viam uma estrada reta levando das práticas coletivas da comunidade aldeã russa a
um futuro socialista, todos tinham como igualmente certo que uma revolução da Rússia
não podia e não seria socialista. As
condições para tal transformação simplesmente não estavam presentes num país
camponês que era um sinônimo de pobreza, ignorância e atraso, e onde o proletariado
industrial, o predestinado coveiro do capitalismo de Marx, era apenas uma minúscula
minoria, embora estrategicamente localizada. Os próprios revolucionários
marxistas russos partilhavam dessa opinião.
Por si mesma, a derrubada do czarismo e do sistema de latifundiários iria
produzir, e só se poderia esperar que produzisse, uma revolução burguesa. A
luta de classes entre a burguesia e o proletariado (que, segundo Marx, só podia
ter um resultado) continuaria então sob as novas condições políticas. Claro, a Rússia não existia isolada, e uma revolução
naquele enorme país, que se estendia das fronteiras do Japão às da Alemanha, e
cujo governo era parte do punhado de potências mundiais que dominava a situação
mundial, não poderia deixar de ter grandes conseqüências internacionais. O
próprio Karl Marx, no fim da vida, tinha esperado que a Revolução Russa agisse
como uma espécie de detonador, disparando a revolução proletária nos países ocidentais
industrialmente mais desenvolvidos, onde estavam presentes as condições para
uma revolução socialista proletária.
Como veremos, lá pelo fim da Primeira Guerra Mundial, pareceu que era exatamente
isso que ia acontecer.
Havia mais uma
complicação. Se a Rússia não estava pronta para a revolução socialista
proletária dos marxistas, tampouco estava para a revolução burguesa liberal. Mesmo os que não queriam mais que isso tinham
de encontrar um meio de fazê-lo sem depender das pequenas e fracas forças da
classe média liberal russa, uma minúscula minoria sem posição moral, apoio
público ou tradição institucional de governo representativo em que pudesse encaixar-se.
Os Cadetes, partido do liberalismo burguês, tinham menos de 2,5% dos deputados da
Assembléia Constitucional livremente eleita (e logo dissolvida) de 1917 e 8. Uma
Rússia liberal burguesa teria de ser conquistada pelo levante de camponeses e
operários que não sabiam nem se importavam com o que era isso, sob a liderança de
partidos revolucionários que queriam outra coisa, ou o que era mais provável,
as forças que faziam a revolução iriam além de seu estágio liberal-burguês,
passando para uma mais radical revolução permanente (para usar a expressão
adotada por Marx e revivida durante a revolução de 1905 pelo jovem Trotski). Em 1917, Lenin, cujas esperanças não tinham
ido muito além de uma Rússia democrático-burguesa em 1905, também concluiu
desde o início que o cavalo liberal não era um dos corredores no páreo revolucionário
russo. Era uma avaliação realista.
Contudo, em 1917 estava tão claro para ele quanto para todos os outros
marxistas russos e não russos que simplesmente não existiam na Rússia as condições
para uma revolução socialista. Para os revolucionários marxistas na Rússia,
sua revolução tinha de espalhar-se em outros lugares.
Mas nada
parecia mais provável de que era isso que iria acontecer mesmo, porque a Grande
Guerra acabou em generalizado colapso político e crise revolucionária, sobretudo
nos Estados beligerantes derrotados. Em 1918, todos os quatro governantes das
potências derrotadas (Alemanha, Áustria Hungria, Turquia e Bulgária) perderam seus
tronos, assim como o czar da Rússia, derrotada pela Alemanha, que já caíra em 1917. Além disso, a inquietação social, equivalendo
quase a uma revolução na Itália, abalou até mesmo os beligerantes europeus do
lado vencedor.
Como vimos, as
sociedades da Europa beligerante começaram a vergar sob as extraordinárias
pressões da guerra em massa. Baixara a onda inicial de patriotismo que se
seguira à eclosão da guerra. Em 1916, o cansaço de guerra transformava-se em hostilidade
surda e calada em relação a uma matança aparentemente interminável e incerta,
que ninguém parecia ter vontade de acabar. Enquanto, em 1914, os adversários da
guerra se sentiam desamparados e isolados, em 1916 podiam sentir que falavam pela
maioria. O quanto a situação mudara dramaticamente foi demonstrado quando, em
28 de outubro de 1916, Friedrich Adler, filho do líder e fundador do partido socialista
austríaco, assassinou deliberadamente e a sangue frio o primeiro ministro
austríaco, conde Stürgkh, num café de Viena era uma época de inocência, antes
dos homens da segurança como um gesto público contra a guerra.
O sentimento
antiguerra naturalmente elevou o perfil político dos socialistas, que cada vez mais
reverteram à oposição que seus movimentos faziam à guerra antes de 1914. Na
verdade, alguns partidos (por exemplo, na Rússia, na Sérvia e na Grã-Bretanha o
Partido Trabalhista Independente) jamais deixaram de opor-se a ela, e, mesmo
onde os partidos socialistas apoiaram a guerra, seus mais eloqüentes opositores
se encontravam em suas fileiras. Ao mesmo tempo, e em todos os grandes países
beligerantes, o movimento trabalhista organizado nas vastas indústrias de armamentos
tornou-se um centro de militância industrial e antiguerra. Os ativistas sindicais
de escalões inferiores nessas fábricas, homens qualificados em forte posição de
barganha (delegados de fábrica na Grã-Bretanha; Betrjebsobleute" na
Alemanha), tornaram-se sinônimos de radicalismo. Os artífices e mecânicos das
novas marinhas de alta tecnologia, pouco diferentes de fábricas flutuantes,
moveram-se na mesma direção. Tanto na Rússia quanto na Alemanha, as principais bases
navais (Kronstadt; Kiel) iriam tornar-se grandes centros de revolução, e mais tarde
um motim naval francês no mar Negro deteria a intervenção francesa contra os
bolcheviques na Guerra Civil russa de 1918-1920. A rebelião contra a guerra
adquiriu assim concentração e atuação. Não admira que os censores
austro-húngaros, controlando a correspondência de seus soldados, passassem a notar
uma mudança de tom. "Se ao menos o bom Deus nos trouxesse a paz tomou-se "Para
nós já chega” ou “Dizem que os socialistas vão fazer a paz”.
Não
surpreende, portanto, que, mais uma vez segundo os censores habsburgos, a
Revolução Russa fosse o primeiro acontecimento político desde o inicio da
guerra a repercutir nas cartas até mesmo de esposas de camponeses e operários. E não surpreende, sobretudo depois que a
Revolução de Outubro levou os bolcheviques de Lenin ao poder, que os desejos de
paz e revolução social se fundissem: um terço da amostragem de cartas
censuradas entre novembro de 1917 e março de 1918 esperava obter a paz via
Rússia, um terço via revolução, e outros 20% via uma combinação das duas. Que
uma revolução na Rússia teria grande repercussão internacional, sempre foi claro
desde que a primeira revolução, em 1905-1906, abalara os antigos impérios sobreviventes
na época, da Áustria-Hungria até a China, passando por Turquia e Pérsia (ver A
era dos impérios, capítulo 12). Em 1917, toda a Europa se tornara um monte de
explosivos sociais prontos para ignição.
A Rússia,
madura para a revolução social, cansada de guerra e à beira da derrota, foi o
primeiro dos regimes da Europa Central e Oriental a ruir sob as pressões e
tensões da Primeira Guerra Mundial. A
explosão era esperada, embora ninguém pudesse prever o momento e ocasião da detonação.
Poucas semanas antes da revolução de fevereiro, Lenin ainda se perguntava em
seu exílio suíço se viveria para vê-la.
Na verdade, o governo do czar desmoronou quando uma manifestação de
operárias (no habitual "Dia da Mulher” do movimento socialista 8 de março)
se combinou com um lockout industrial na notoriamente militante metalúrgica Putilov
e produziu uma greve geral e a invasão do centro da capital, do outro lado do
rio gelado, basicamente para exigir pão.
A fragilidade do regime se revelou quando as tropas do czar, mesmo os
leais cossacos de sempre, hesitaram e depois se recusaram a atacar a multidão, e
passaram a confraternizar com ela. Quando, após quatro dias de caos, elas se
amotinaram, o czar abdicou, sendo substituído por um governo liberal
provisório, não sem certa simpatia e mesmo ajuda dos aliados ocidentais da
Rússia, que temiam que o desesperado regime do czar saísse da guerra e
assinasse uma paz em separado com a Alemanha.
Quatro dias espontâneos e sem liderança na rua puseram fim a um Império.
Mais que isso: tão pronta estava a Rússia para a revolução social que as massas
de Petrogrado imediatamente trataram a queda do czar como uma proclamação de
liberdade, igualdade e democracia direta universais. O feito extraordinário de
Lenin foi transformar essa incontrolável onda anárquica popular em poder
bolchevique. Assim, em vez de uma Rússia liberal e constitucional voltada para
o Ocidente, disposta a combater os alemães, o que resultou foi um vácuo revolucionário:
um governo provisório impotente de um lado, e do outro uma multidão de
conselhos de base (sovietes) brotando espontaneamente por toda parte, como cogumelos
após as chuvas. Estes tinham poder de fato, ou pelo menos poder de veto, mas
não tinham idéia do que fazer com ele, ou do que se poderia fazer. Os vários partidos e organizações revolucionários
social-democratas bolcheviques e mencheviques, social-revolucionários, e
inúmeras facções menores da esquerda, emergindo da ilegalidade tentaram estabelecer-se
nessas assembléias, para coordená-las e converte-las às suas políticas, embora
no início só Lenin as visse como a alternativa para o governo (Todo poder aos
sovietes). Contudo, é claro que, quando
o czar caiu, uma proporção relativamente pequena do povo russo sabia o que
representavam os rótulos dos partidos revolucionários, e os que sabiam em geral
não eram capazes de discernir seus apelos rivais. O que sabiam era apenas que não
mais aceitavam autoridade nem mesmo a autoridade dos revolucionários que diziam
saber mais do que eles.
A
reivindicação básica dos pobres da cidade era pão, e a dos operários entre
eles, melhores salários e menos horas de trabalho. A reivindicação básica dos
80% de russos que viviam da agricultura era, como sempre, terra. Todos
concordavam que queriam o fim da guerra, embora a massa de soldados camponeses
que formava o exército não fosse a princípio contra a luta como tal, mas contra
a severa disciplina e maltrato de outros soldados. O slogan "Pão, Paz,
Terra" conquistou logo crescente apoio para os que o propagavam, em
especial os bolcheviques de Lenin, que passaram de um pequeno grupo de uns
poucos milhares em março de 1917 para um quarto de milhão de membros no início
do verão daquele ano. Ao contrário da mitologia da Guerra Fria, que via Lenin
essencialmente como um organizador de golpes, a única vantagem real com que ele
e os bolcheviques contavam era a capacidade de reconhecer o que as massas queriam;
de conduzir, por assim dizer, por saber seguir. Quando, por exemplo, ele
reconheceu que, o contrário do programa socialista, os camponeses queriam uma divisão
da terra em fazendas familiares, não hesitou um instante em comprometer os bolcheviques
com essa forma de individualismo econômico.
Ao contrário, o
Governo Provisório e seus seguidores não souberam reconhecer sua incapacidade
de fazer a Rússia obedecer suas leis e decretos. Quando homens de negócios e administradores
tentaram restabelecer a disciplina de trabalho, não fizeram mais que
radicalizar os trabalhadores. Quando o Governo Provisório insistiu em lançar o exército
na ofensiva militar em junho de 1917, o exército estava farto, e os soldados
camponeses voltaram para suas aldeias a fim de tomar parte na divisão de terra
com os parentes. A revolução espalhou-se
pelas estradas de ferro que os levavam de volta para casa. Ainda não era o momento para uma queda
imediata do Governo Provisório, mas do verão em diante a radicalização se acelerou
tanto no exército quanto nas principais cidades, cada vez mais em favor dos bolcheviques. O campesinato deu apoio esmagador aos
herdeiros dos narodniks (ver A era da catástrofe, capítulo 9), os
social-revolucionários, embora estes se tornassem uma esquerda mais radical, que
se aproximou dos bolcheviques, e em breve se juntou a eles no governo após a Revolução
de Outubro.
Quando os
bolcheviques até então um partido de operários se viram em maioria nas principais
cidades russas, e sobretudo na capital, Petrogrado e Moscou, e depressa ganharam
terreno no exército, a existência do Governo Provisório tornou-se cada vez mais
irreal; em especial quando teve de apelar às forças revolucionárias na capital para
derrotar uma tentativa de golpe contra-revolucionário de um general monarquista
em agosto. A onda radicalizada de seus seguidores inevitavelmente empurrou os
bolcheviques para a tomada do poder. Na verdade,
quando chegou a hora, mais que tomado, o poder foi colhido. Diz-se que mais gente
se feriu na filmagem da grande obra de Einsenstein, Outubro (1927), do que
durante a tomada de fato do Palácio de Inverno em 7 de novembro de 1917. O
Governo Provisório, sem mais ninguém para defendê-lo, simplesmente se esfumou.
Do momento em
que a queda do Governo Provisório se tornou certa, a Revolução de Outubro foi mergulhada
em polêmicas. A maioria delas é enganadora.
A verdadeira questão não é se a Revolução, como têm dito historiadores anticomunistas,
foi um putsch ou um golpe do fundamentalmente antidemocrático Lenin, mas quem,
ou o quê, devia ou podia seguir-se à queda do Governo Provisório. A partir do início
de setembro, Lênin tentou não apenas convencer os elementos hesitantes em seu
partido de que o poder poderia fugir-lhes com facilidade se não tomado por um
plano organizado, durante o tempo possivelmente curto em que estava ao seu alcance,
mas talvez com igual urgência responder à pergunta Podem os bolcheviques manter
o poder do Estado? se o tomassem. Que poderia
fazer, na verdade, qualquer um que tentasse governar a erupção vulcânica da Rússia
revolucionária? Nenhum outro partido além
dos bolcheviques de Lenin estava preparado para enfrentar essa responsabilidade
sozinho e o panfleto de Lenin sugere que nem todos os bolcheviques estavam tão determinados
quanto ele. Em vista da situação política
favorável em Petrogrado, em Moscou e nos exércitos do Norte, a defesa puramente
de curto prazo da tomada do poder já, em vez de esperar outros acontecimentos,
era de fato difícil de responder. A contra-revolução
apenas começara. Um governo desesperado, em vez de dar lugar aos sovietes,
podia entregar Petrogrado ao exército alemão, já na fronteira norte do que é
hoje a Estônia, ou seja, a alguns quilômetros da capital. Além disso, Lenin
raramente hesitou em encarar de frente os atos mais sombrios. Se os
bolcheviques não tomassem o poder, "uma onda de verdadeira anarquia podia
tornar-se mais forte do que nós. Em última análise, o argumento de Lenin não podia
deixar de convencer seu partido. Se um partido revolucionário não tomasse o poder
quando o momento e as massas o pediam, em que ele diferia de um partido não revolucionário?
A perspectiva em
longo prazo é que era problemática, mesmo supondo-se que o poder tomado em
Petrogrado e Moscou pudesse ser estendido ao resto da Rússia e ali mantido contra
a anarquia e a contra-revolução. O programa do próprio Lenin, de empenhar o novo
governo do soviete (isto é, basicamente Partido Bolchevique) na transformação socialista
da República russa, era essencialmente uma aposta na transformação da Revolução
Russa em revolução mundial, ou pelo menos européia. Quem como ele disse tantas vezes
imaginaria que a vitória do socialismo pode se dar [...] a não ser pela completa
destruição da burguesia russa e européia?. Nesse meio tempo, o dever básico, na
verdade único, dos bolcheviques era se agüentarem. O novo regime pouco fez sobre o socialismo, a
não ser declarar que esse era seu objetivo, tomar os bancos e declarar o
controle dos operários sobre as administrações existentes, isto é, apor o selo oficial
ao que já vinham fazendo de qualquer modo desde a Revolução, enquanto os exortava
a manterem a produção funcionando. Nada mais tinha a dizer-lhes.
O novo regime
se agüentou. Sobreviveu a uma paz punitiva imposta pela Alemanha em Brest-Litowsk,
alguns meses antes de os próprios alemães serem derrotados, e que separou a Polônia,
as províncias bálticas, a Ucrânia e partes substanciais do Sul e Oeste da Rússia,
além de, de facto, a Transcaucásia (a
Ucrânia e a Transcaucásia foram recuperadas).
Os aliados não viram motivo para ser mais generosos com o centro da
subversão mundial. Vários exércitos e regimes contra-revolucionários (brancos) levantaram-se
contra os soviéticos, financiados pelos aliados, que enviaram tropas britânicas,
francesas, americanas, japonesas, polonesas, sérvias, gregas e romenas para o
solo russo. Nos piores momentos da brutal
e caótica Guerra Civil de 1918 20,
a Rússia soviética foi reduzida a uma faixa de
território sem saída para o mar, no Norte e no Centro da Rússia, em algum ponto
entre a região dos Urais e os atuais Estados bálticos, a não ser pelo estreito dedo
exposto de Leningrado, apontado para o golfo da Finlândia. As únicas vantagens importantes com que o
novo regime contava, enquanto improvisava do nada um Exército Vermelho
eventualmente vitorioso, eram a incompetência e divisão das briguentas forças
brancas, a capacidade destas de antagonizar o campesinato da Grande Rússia, e a
bem fundada desconfiança entre as potências ocidentais de que não podiam
ordenar com segurança a seus soldados e marinheiros rebeldes que combatessem os
bolcheviques. Em fins de 1920, os bolcheviques haviam vencido.
Assim, contra as
expectativas, a Rússia soviética sobreviveu. Os bolcheviques mantiveram, na
verdade ampliaram, seu poder, não só (como observou Lênin com orgulho e alívio
após dois meses e quinze dias) por mais tempo que a Comuna de Paris de 1871,
mas durante anos de ininterrupta crise e catástrofe, conquista alemã e
imposição de paz punitiva, separações regionais, contra-revolução, guerra civil,
intervenção armada estrangeira, fome e colapso econômico. Não podia ter estratégia ou perspectiva além
de optar, dia a dia, entre as decisões necessárias à sobrevivência imediata e
as que arriscavam um desastre imediato.
Quem podia dar-se ao luxo de considerar as possíveis conseqüências em
longo prazo, para a Revolução, de decisões que tinham de ser tomadas já, do
contrário seria o fim da Revolução e não haveria outras conseqüências a considerar?
Uma a uma, as medidas necessárias foram tomadas. Quando a nova República soviética emergiu de
sua agonia, descobriu-se que essas medidas a haviam levado para um lado muito
distante do que Lenin tinha em mente na Estação Finlândia.
Mesmo assim, a
Revolução sobreviveu. E o fez por três grandes razões: primeiro, possuía um
instrumento de poder único, praticamente construtor de Estado, no centralizado
e disciplinado Partido Comunista de 600 mil membros. Qualquer que tenha sido
seu papel antes da Revolução, esse modelo organizacional, incansavelmente
propagado e defendido por Lênin desde 1902, atingiu a maioridade depois dela. Praticamente todos os regimes revolucionários
do Breve Século 20 iam adotar alguma variação dele. Segundo, era, de forma
evidente, o único governo capaz de manter a Rússia integral como Estado e disposto
a tanto, desfrutando, portanto, de considerável apoio de patriotas russos à parte
isso politicamente hostis, como os oficiais sem os quais o novo Exército Vermelho
não poderia ter sido construído. Para estes,
como para o historiador que trabalha em retrospecto, a opção em 1917 - 8 não era
entre uma Rússia liberal-democrática ou não liberal, mas entre a Rússia e a
desintegração, que havia sido o destino de outros impérios arcaicos e
derrotados, ou seja, a Áustria-Hungria e a Turquia. Ao contrário destes, a Revolução Bolchevique preservou
a maior parte da unidade territorial multinacional do velho Estado czarista
pelo menos por mais 74 anos. A terceira razão era que a Revolução permitira ao
campesinato tomar a terra. Quando chegou a isso, o grosso dos camponeses da
Grande Rússia núcleo do Estado, além de do seu novo exército achou que suas chances
de mantê-la eram melhores sob os vermelhos do que se retomasse a fidalguia.
Isso deu aos bolcheviques uma vantagem decisiva na Guerra Civil de 1918-1920.
Como se viu, os camponeses russos foram otimistas demais.
HOBSBAWN. Eric. A ERA DOS
EXTREMOS. O breve século XX.
Companhia das letras